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Laura Niembro: “IA tem limitações e precisa ser aplicada com supervisão humana, ética e responsabilidade.”
Fotos: Ricardo Matsukawa
A palestra “Inteligência digital na gestão e organização de eventos literários” foi um dos destaques da 15ª edição do Seminário Internacional Biblioteca Viva. Laura Niembro, diretora de conteúdo da Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), no México, trouxe perspectivas valiosas sobre o uso da inteligência artificial (IA). “A IA, por enquanto, é mais uma promessa do que uma realidade na gestão de atividades culturais”, afirmou logo no início da conversa mediada por Tamires Neves, do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas da Bahia. Para Laura, é necessário cautela antes de que organizações como a FIL Guadalajara considerem-se prontas para a IA: “há muitas coisas a se resolver antes de poder ´tocar os sinos´”, disse.
Confira alguns dos melhores momentos de sua palestra:
O que a IA poderia fazer pelos festivais literários e feiras:
“A inteligência artificial pode ajudar a organizar um evento mais dinâmico e adaptado às necessidades do público global, em suma, melhorar a experiência tanto de leitores quanto de profissionais participantes. A IA pode, por exemplo, criar sistemas de recomendação, analisando as preferências dos participantes, como os gêneros literários que gostam, autores preferidos, e então recomendar livros, palestras ou atividades de acordo com esses interesses, levando em conta o histórico de participação em eventos anteriores. Também pode ajudar com publicidade personalizada, usando algoritmos que analisam o comportamento online e segmentam melhor as campanhas de marketing, garantindo que as mensagens cheguem ao público mais adequado. A IA também pode analisar as redes sociais em tempo real para medir a percepção do evento, permitindo que os organizadores ajustem as estratégias de marketing. Além disso, promete análise de feedback, examinando os comentários de participantes e expositores para identificar padrões, problemas recorrentes e áreas de melhoria para futuras edições. Também promete prever tendências literárias, ajudando os organizadores a preparar melhor a oferta de livros e eventos nas próximas edições. Uau, essas são apenas algumas coisas. Diz também que pode descobrir novos talentos, além dos chatbots que muitos já conhecem, e até assistentes de voz para pessoas com deficiências auditivas ou visuais.”
Limites éticos e desafios da IA:
“Isso só pode ser feito graças à coleta e análise de uma quantidade imensa de dados que nem sequer podemos imaginar. Então, o que a IA teria que fazer para, por exemplo, me fazer uma recomendação? Bem, precisaria coletar dados dos participantes da feira, incluindo preferências de gênero literário, autores favoritos, histórico de compras, resenhas e avaliações, além de dados demográficos, como idade, gênero, localização, etc. Ter acesso a toda a sua vida digital... Para te fazer uma recomendação, eu precisaria mergulhar em sua vida digital, ver, por exemplo, aquela foto que você postou há quatro meses pescando com seu namorado, e com base nisso, recomendar um livro sobre pesca. Imagine o que isso representa em termos de privacidade. Também seria necessário ter uma base de dados, não só sobre o seu perfil ou toda a sua interação digital, mas uma base detalhada de todos os livros disponíveis na feira, o que, a olho nu, seriam cerca de 250.000 títulos, incluindo gêneros, sinopses, autores, edições e resenhas certificadas de cada um. Só isso já representaria uma enorme operação de armazenamento e processamento de dados. No entanto, as recomendações personalizadas podem não ser tão úteis para nos aproximar do que ainda não sabemos que vamos gostar, do que ainda não sabemos que nos interessará. A IA se basearia em nossa atividade e ambiente digital para fazer recomendações, mas não se trata apenas de te oferecer o que você espera de uma feira literária ou evento cultural, e sim de te surpreender. Os curadores de eventos internacionais têm o desafio de propor coisas que o público não sabe que vai gostar. Nesse sentido, a inteligência artificial ainda fica um pouco aquém, pois nosso trabalho é justamente propor o que não está no conhecimento comum. Portanto, a IA nos coloca diferentes perguntas: sobre a privacidade dos dados, a algoritmização de nossas vidas, a imparcialidade e a verossimilhança algorítmica.”
A perspectiva do ChatGPT:
“O ChatGPT reflete valores semelhantes aos de um homem branco, universitário, norte-americano de 30 anos. Esse é o ponto de vista que ele aplicaria para qualquer pergunta que fizermos. Para começar, o panorama é anglocêntrico. Apenas 5% das referências que o ChatGPT utiliza estão escritas em espanhol, nem vou mencionar línguas como o ticuna, por exemplo. Além disso, as respostas da IA podem reforçar estereótipos e preconceitos existentes, pois a IA é um exercício estatístico. O que isso significa? Que ela se baseia na média, enquanto as extremidades são eliminadas, como naquela famosa curva do sino…”
Mainstream x Inovação cultural:
“Se seguíssemos cegamente as sugestões da Inteligência Artificial (IA), que se baseiam apenas em médias da informação que ela acessa, não teríamos, por exemplo, o Festival de Literatura Brasileira Contemporânea dentro da Feira de Guadalajara. Esse subfestival provavelmente não existiria. Se eu tivesse perguntado à IA o que meu público queria, ela teria sugerido algo diferente. Ou, se eu perguntasse quem é uma nova voz da literatura contemporânea que eu preciso conhecer, a IA nunca teria indicado Amílcar Bettega Barbosa, autor que acabou de ganhar o Prêmio de Literatura em Línguas Românicas, o prêmio mais importante da feira. Esse é um autor lusófono relativamente desconhecido, e a IA provavelmente não o sugeriria. Precisamos ter cuidado com essa questão de se basear nas médias. A inovação cultural, ao contrário da inovação tecnológica, geralmente não está no mainstream, mas nas margens, nas periferias. São as editoras independentes ao redor do mundo que estão descobrindo novos talentos literários, encontrando essas novas vozes que eventualmente serão grandes autores e que talvez, um dia, sejam contratados pelas grandes editoras.”
O que a IA não é:
“Embora possa simular comportamentos humanos ou gerar respostas aparentemente empáticas, a IA não experimenta sensações nem emoções como nós, e, portanto, não consegue transmiti-las. A IA não é mágica. Sua capacidade de realizar tarefas complexas é baseada em algoritmos, lógica e processamento de dados, e ela precisa de uma enorme quantidade de dados e treinamento para funcionar. Suas capacidades são limitadas pelo design e pelos dados disponíveis. Por exemplo, seria muito difícil para a IA fazer uma recomendação precisa ou fornecer uma visão realista sobre a literatura escrita em línguas indígenas em nosso continente, a menos que ela se baseasse em alguns trabalhos acadêmicos. Mas o que está acontecendo agora, nas ruas da Cidade do México ou do Rio de Janeiro, a IA não consegue captar. A IA também não é infalível. Está sujeita a erros, e suas respostas dependem da precisão dos dados com os quais foi treinada, dos algoritmos utilizados e da capacidade de interpretar esses dados corretamente. Ela não é uma solução mágica para todos os nossos problemas, e, embora seja muito útil, tem limitações e precisa ser aplicada com supervisão humana, ética e responsabilidade.”
Desafio para bibliotecários:
“Se não aprendermos a utilizá-la ou a compreender seu papel em nosso trabalho diário, ficará muito difícil acompanhar o ritmo. Temos que estabelecer padrões éticos e legais, especialmente em relação aos direitos autorais e à privacidade dos dados. Além disso, as previsões feitas pela IA nem sempre são precisas ou benéficas para o campo editorial e cultural. Como mediadores, o trabalho de bibliotecários e curadores continua sendo fundamental.”